Entrevista da semana – Fabio Aires da Cunha

Entrevista da semana – Fabio Aires da Cunha

“Não acredito que os estádios brasileiros, de um modo geral, sejam os facilitadores para as brigas, já que a violência está cada vez mais longe deles, as brigas foram transportadas para estações de metrô e trem, avenidas e estradas”

Wendel Caballero Mello

Cunha: dez anos de olho nas torcidas

As torcidas são um dos grandes fenômenos que envolvem o espetáculo do futebol. Certamente, elas representam o lado mais humano desse evento esportivo, com tudo que isso pode ter de bom e ruim. Além de oferecer apoio ao time, o torcedor organizado, às vezes, mostra toda a violência que existe em grandes aglomerações futebolísticas, nos estádios e em qualquer outro espaço público.

Verificar se as torcidas são parte fundamental de um espetáculo ou apenas peças de puro vandalismo do futebol nos dias de hoje foi o que moveu o pesquisador Fabio Aires da Cunha, de 31 anos. Ele, que também é professor, começou a desenvolver essa análise há cerca de dez anos ainda no período que cursava Bacharelado em Esporte na Universidade de São Paulo (USP).

Apaixonado pelo tema, foi sofisticando o estudo e, uma década depois, uma versão ampliada e atualizada do trabalho acaba de ser publicada no livro Torcidas no Futebol: Espetáculo ou Vandalismo?, lançamento da editora Scortecci.

Trata-se de um livro que pretende entender a ação do torcedor, do indivíduo inserido na massa, que pode praticar atos que nem pensaria em realizar de forma individual. Grande parte dessa violência que assola, assusta, choca e revolta o meio esportivo e a opinião pública é cometida por grupos de vândalos inseridos nas torcidas do futebol e não pelo torcedor que vai ao estádio vibrar com seu time.

O assunto explosivo não se mostra preso ao Brasil. A Europa vive assolada por demonstrações racistas e fascistas, muitas feitas por torcedores organizados. Em terras brasileiras, outros desses marcam encontros para brigar com torcidas rivais até pela Internet. Muitos desses embates acabam até em mortes.

Em um cenário como o apresentado acima, a reflexão proposta por Fábio Cunha não poderia ser mais oportuna. Veja a seguir a entrevista que a Cidade do Futebol realizou com o autor desse importante trabalho, que chega agora às livrarias.

Cidade do Futebol – Como surgiu a ideia de escrever um livro sobre torcidas no futebol?

Fabio Cunha – Essa obra é o desfecho de um trabalho acadêmico iniciado em 1995. Realizei minha monografia de conclusão do curso de graduação em Bacharelado em Esporte pela USP sobre esse assunto. O trabalho intitulado Violência das Torcidas Organizadas no Futebol recebeu inclusive um prêmio da faculdade como um dos melhores trabalhos de término de graduação daquela época. Nesses 10 anos que se passaram, a pesquisa foi ampliada, melhorada e revisada para se tornar um livro.

Cidade do Futebol – Na sua opinião, as torcidas no futebol produzem espetáculo ou somente vandalismo?

Cunha – Existem os dois tipos. Infelizmente o vandalismo vem crescendo muito nos últimos tempos. Lembro de quando podíamos ir aos estádios tranquilamente, quando as torcidas tinham bandeiras, instrumentos musicais, confetes e faziam um verdadeiro espetáculo. Quando os torcedores se preocupavam somente em incentivar o clube, sem agredir ninguém. Eles se esquecem de que, quando se unem para praticar atos de violência e vandalismo, isso apenas denigre e prejudica a imagem do esporte e mais ainda a de seu clube de coração.

Cidade do Futebol – Como analisar o perfil dos torcedores de futebol dos dias de hoje?

Cunha – Dentro de uma torcida organizada, você encontrará indivíduos de todos os perfis. Mas os violentos têm um perfil mais ou menos parecido. A maioria é de jovens que estão numa faixa etária entre 15 e 30 anos, pertencem a classes sociais mais baixas, não possuem formação acadêmica e nem todos trabalham. São indivíduos que possuem graves problemas educacionais e sociais.

Cidade do Futebol – A situação social e econômica do Brasil é um fator que pode explicar a violência dos torcedores?

Cunha – Isso poderia ser uma desculpa, mas países desenvolvidos e ricos também possuem os seus vândalos. O Brasil tem dois problemas muito graves: educação ineficiente e impunidade. Se a justiça conseguisse punir exemplarmente os torcedores violentos, seu número diminuiria sensivelmente. Com a impunidade, o marginal fica mais corajoso, sabe que não será castigado. Com relação à educação, uma política educacional mais eficiente e consciente, com ações concretas, como a inserção dos jovens na sociedade e mercado de trabalho, também ajudaria muito a mudar esse quadro.

Cidade do Futebol – Analisando o modo de ser de cada torcida – a maneira como os indivíduos se expressam por meio delas – como poderíamos defini-las?

Cunha – As torcidas evoluíram em ações, comportamento e características ao longo das últimas cinco ou seis décadas. As mudanças na sociedade brasileira influenciaram muito esse processo e o aumento da violência na sociedade se refletiu no futebol. Afinal esse esporte, como manifestação da cultura, não está à margem dos fenômenos sociais.

Cidade do Futebol – Qual foi a descoberta realizada durante a sua pesquisou que originou o livro que mais lhe chamou a atenção sobre o perfil das torcidas no Brasil?

Cunha – Infelizmente, o que mais me chamou a atenção é a premeditação dos atos de violência. Muitas torcidas preparam emboscadas para rivais e até combinam brigas. Recentemente vimos isso acontecer no campeonato brasileiro de 2005, quando torcedores combinaram via Orkut ou site de clubes encontros para emboscar outros torcedores. Esses atos, muitas vezes, são planejados com a intenção de matar ou provocar graves danos físicos e morais.

Cidade do Futebol – O que difere os torcedores europeus dos latinos?

Cunha – A origem das torcidas é a mesma, independente do seu país: incentivar e apoiar o time. Já os motivos que levam à violência são outros. Os latinos são movidos pela paixão pelo clube. Querem a vitória a qualquer custo, inclusive tendo os torcedores rivais como inimigos. A ideia é fazer pressão e intimidar os adversários. A violência praticamente se restringe aos jogos de seus clubes, são raras as brigas em partidas de sua seleção nacional. Já os europeus possuem outros motivos para cometer violência, tais como política e religião. Observam-se muitos conflitos em jogos entre seleções nacionais, surge aí os hooligans ingleses, alemães e holandeses. Na Escócia, por exemplo, as duas torcidas dos principais clubes são rivais devido à diferença religiosa: Celtic (católicos) e Rangers (protestantes).

Cidade do Futebol – Você acredita que as torcidas têm poder nas decisões tomadas pelos clubes, na parte administrativa deles?

Cunha – Algumas torcidas foram criadas para aumentar influência do torcedor no clube. A Gaviões da Fiel, por exemplo, foi organizada por um grupo de corintianos que discutiu com um dirigente após uma derrota e consequente desclassificação do time (NR: fato ocorrido em 1969). A torcida pretendia ter uma voz ativa no clube e influenciar dirigentes, jogadores e comissão técnica. O problema é que algumas delas realmente atingiram um status de muita influência, sentindo-se no direito de exigir e cobrar resultados, às vezes, com violência e intimidação.

Cidade do Futebol – Você acredita que algumas torcidas são usadas pelos dirigentes dos clubes em determinados momentos?

Cunha – Sem dúvida nenhuma.Existem muitos dirigentes do mundo do futebol que sustentam esses grupos, inclusive financeiramente. Pagam ingressos, fornecem ônibus para viagens, aceitam demais suas opiniões e até pagam “salários” para os torcedores organizados. Em troca eles ganham apoio político para futuras eleições no clube e não sofrem tanta pressão.

Cidade do Futebol – Nossos estádios se parecem muito com os estádios ingleses antes das catástrofes ocorridas em na década de 80. Você acredita que podemos sofrer alguns acidentes como os ocorridos na Inglaterra naquele fatídico período?

Cunha – Esse é um grande problema do futebol brasileiro, a falta de organização. Enquanto temos excelentes jogadores e profissionais de comissão técnica, não temos profissionais organizando campeonatos e eventos na mesma altura. Muitos estádios se modernizaram, mas ainda estão longe da estrutura dos estádios europeus. A falta de dinheiro é uma desculpa, mas muitos clubes europeus utilizaram a iniciativa privada para reformar e ampliar seus estádios, sem gastar nenhum tostão próprio. Contudo, podemos perceber que o problema da violência está cada vez mais longe dos estádios, as brigas quase acabaram dentro dos mesmos, foram transportadas para fora, para estações de metrô e trem, avenidas e estradas. Não acredito que os estádios brasileiros, de um modo geral, são os responsáveis ou os facilitadores para as brigas. Catástrofes dentro de estádios são raras e somente ocorrerão se os dirigentes superlotarem os mesmos.

Cidade do Futebol – Na Europa algumas torcidas servem de outdoor de mensagens racistas, e fascistas. No Brasil, esses torcedores dão espaço para os confrontos de gangue, lutas de rua, enfim, estão sempre ligados a algum fato social. Como você vê essa ligação?

Cunha – Na Europa, infelizmente, alguns clubes e países ainda possuem uma mentalidade antiquada no que se relaciona à raça e à religião. Esses torcedores acabam descontando em atletas de outros países, principalmente sul-americanos e africanos, toda a sua ignorância e preconceito. Já o Brasil é um país com maior diversidade racial. As manifestações racistas praticamente raramente o futebol, porque possuímos jogadores de todas as raças nos clubes e na seleção brasileira. Aqui grande parte dos torcedores uniformizados são jovens que acabam criando subgrupos de vândalos. Normalmente, esses indivíduos não têm perspectiva futura com relação a emprego e carreira, com isso descontam no futebol toda a sua frustração. A violência é gratuita, não atinge um público específico, tem como alvo a torcida rival.

Cidade do Futebol – Podemos dizer então que a torcida reflete a sociedade local?

Cunha – Sim, com algumas ressalvas. Não podemos generalizar todos os torcedores de cada local. Num país de terceiro mundo, nem todos eles são violentos e sem condição social, como num país rico, nem todos são educados. Mas que a situação social e econômica de um país pode influenciar, isso pode.

Cidade do Futebol – Qual é a sua projeção para o futuro das torcida organizada?

Cunha – Infelizmente sou pessimista sobre esse futuro, se nenhuma medida radical for adotada. Se a justiça não passar a punir com rigor esses vândalos, a tendência é que a violência aumente a níveis alarmantes. É necessário um estudo amplo para saber se as torcidas devem ou não ser extintas. Tentar entender se essa medida acabaria com a violência ou não. Acredito que os maus elementos devem ser punidos e banidos do futebol.

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Fonte:

Universidade do Futebol